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RECORDAMOS UMA ENTREVISTA
CONCEDIDA À TRANCA PELO
CASCADA ,UM DOS CRIADORES
DA TRANCA..
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sexta-feira, maio 28, 2004
CASCADA , em entrevista
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ENTREVISTA COM O CASCADA
CONCEDIDA EM 1978
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TRANCA - CONSIDERAS-TE UM
INDIVIDUO AMADURECIDO?
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CASCADA - A maturidade no conceito comum de estabilidade, compromisso e conformismo - o empregozinho, a casinha , a mulherzinha, as tias velhas, o carrinho, o frigorificozinho, a televisãozinha, a missa de sábado e o passeio de Domingo, e , como complemento de tudo isso, o filme pornográfico, ou a bala nos cornos - é coisa que não dá comigo. Em Francês "mûrir" e "mourir" quase que se confundem; na minha linguagem são a mesma coisa.
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T - O QUE PRETENDES ATINGIR
NA VIDA?
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C - Nada!, ou melhor, a vida ela mesma.Não uma vida qualquer igual à carneirada, mas uma vida feérica, sensacional, bombástica,louca, triunfal - e ao contrário também, o que vem dar ao mesmo - genial e sobretudo minha e reflectidamente dos outros...só se pode saber o resultado no fim. Para já quero ter a certeza de que vou para o inferno.
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T - PORQUE NÃO GOSTAS DE
TE DEFINIR?
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C - Porque não sei. Porque um certo mistério torna as pessoas interessantes, e porque sou una entidade circunstancial e histórica e a História não se define como quem define um calhau: faz-se, desfaz-se e refaz-se constantemente. Poder dizer como o Espuma: "Eu não tenho espírito eclético (sic) , tenho convicções seguras e imutáveis", é um privilégio de uma estulta, grosseira e jesuítica autosatisfação. Disse:...
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T - ÉS HEDONISTA?
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C - Ao máximo. Hedonista, epicurista, narcisista, imoralista, vaidoso e malcriado..E o contrário isso tudo também.
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T - ACHAS QUE SE PODE ANDAR
UMA VIDA INTEIRA A CHAFURDAR
"ISMOS"?
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C - Acho. Até por uma questão de fatalidade histórica. E depois o objecto essses "ismos" pode variar até ao infinito.
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T - CONSIDERAS-TE UM RACIONALISTA?
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C - Tenho uma formação racionalista como todos nós burgueses ,europeus,trinta anos de idade...uma formaçao do sec XIX, como diz o Carlos Correia.
Mas apesar disso apanho-me centenas de vezes a funcionar ao contrário e é quando me sinto melhor.Raciciono com outra víscera qualquer que não o cérebro.
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T - SE PUDESSES CENTRALIZAR EM TI O MUNDO À TUA MEDIDA, O QUE É QUE LÁ PUNHAS?
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C - Independentemente da maneira como concebo a sociedade ideal e estando as coisas como estão, acho que construíria uma casa muito simples no meio de um lago e ligado à terra por uma ponte levadiça. Lá dentro uma aparelhagem super estereofónica, uma discoteca (sem fados) e uma biblioteca (sem José Régio). À volta disso tudo um enorme Jardim Antropológico...E milho para os habitantes do Jardim virem comer à mão.
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T - PORQUE ÉS TÃO PUTA?
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C - Desculpe , mas não gosto de passar receitas...
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T - TENS MEDO DE TE ENCARAR A
TI MESMO?
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C - Não. Gostava até de ir mais longe no conhecimento de mim. Por exemplo pela psicanálise. Há coisas que ainda me resistem.Talvez as piores, mas as que tenho de bom já estou farto
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T - GOSTAS DO TAQUELIM CASCADA?
PORQUÊ?
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T - Gosto!...Encontro nele qualidades que faltam à maioria das pessoas; é preguiçoso, desmazelado, e apesar disso tem um certo bom gosto, sabe ser simpático mesmo para aqueles que só mereciam chapadas, é suficientemente pedante para não se considerar culto, enfim é, e sabe que é, e explora essa explosiva -e criativa, porque não?- mistura de sublime e de abjecto que toda a gente é, mas que normalmente só aproveita a abjecção. Em suma, é tão contraditório, que olhá-lo não cansa...
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T - ESTÁS CONVENCIDO QUE ASSIM
ESCAPAS AO SISTEMA?
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C - Não!. O sistema é uma malha demasiado subtil. Num certo sentido isto é o sistema a trabalhar em mim. Gostava de fugir ao dramatismo barato de dizer que sou uma vítima do sistema, mas lá está!!!.O que acontece é que a gente pode fruí-lo no que eventualmente tenha de aproveitável e simultâneamente negá-lo todos os dias (tenho a impressão que é na vida de todos os dias que temos de começar por contradizê-lo. Na rua , no trabalho , na família). E depois é uma realidade tão complexa, que pode ser roído por uma data de lados.
Isto parece uma confissão de impotência, mas uma maneira possível de esconjurar o mal, é agarrá-lo, tomar dele a consciência mais lúcida possível - como na psicanálise - mastigá-lo, (in)digeri-lo e depois cagá-lo. Porque olhado com olhos críticos o sistema é um mar de merda.. Podia estar com as algibeiras cheias de bombas para o destruir, mas por um lado tenho medo das bombas, e por outro, nem todas as bombas da II Guerra Mundial foram suficientes para rebentar com ele, pelo contrário, até o reforçaram. Ora se à bomba não vai, o veneno tem de ser muito mais subtil...avacalhando não só a base económica , mas subvertendo simultâneamente as raízes ideológicas da classe dominante. Uma classe dominante que já não acredita nos princípios que a levram ao Poder é o melhor adubo para uma revolução (..........................)
It will go with a little help of the first wordl. Parafresendo os Beatles...
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T - POR UM LADO GOSTAVAS QUE
A REVOLUÇÃO SE FIZESSE JÁ, POR
OUTRO PARECE QUE ESSA REVOLUÇÃO
IRIA COLIDIR COM AS TUAS NECESSI -
DADES INTELECTUAIS?...
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C - Sou um decadente, tenho a marca da minha origem burguesa. Daí que a revolução viesse bulir comigo em certos - afinal, parece que muito poucos - aspectos. Mas porque é que eu não havia de ser eliminado para que a revolução se fizesse? Não sei se isto é masoquismo (a revolução parece ter também o seu fundamento erótico, vidé Reich, Marcuse, Fromm...-e esta?) ou se será assumpção do meu lugar na História....
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T - QUE ACHAS QUE SERIA PRECISO
PARA DESMASCARAR A RELIGIÃO?
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C - Era preciso alterar radicalmente as relações de produção, isto é, fazer a revolução económica e social...O resto levaria o seu tempo, mas viria a ser acréscimo natural.
É um facto que as Igrejas têm hoje muito menos prestígio e poder, dada uma certa democratização da riqueza e da cultura. E não me digam que há hoje um recrudescimento do misticismo. No fundo isso não passa de um fenómeno circunscrito .
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T - EM QUE ÉPOCA GOSTARIAS DE
TER VIVIDO?
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C - Agora.Na nossa época. No sec XVI, por exemplo, já teria sido mil vezes queimado por heresia..
Ou no sec II D.C.: "os deuses já estavam mortos e Deus ainda não tinha sido inventado" Era tudo existencialista!...
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T - QUE FIGURAS MAIS ADMIRAS
E PORQUÊ?
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C - Já não preciso de heróis. Agora o herói sou eu porque estou vivo. Mas ....Brecht, o Imperador Adriano, cada um à sua maneira...Todos os recusados que sabem resistir: - os índios americanos, os negros, os bascos, os curdos. Só porque são contra. Ser activamente é sempre ser de encontro a qualquer coisa - e os gatos (embora os deteste) porque não reconhecem o dono. Ah! E o meu particular amigo Vaz, por ser um rapaz sério, trabalhador, bom pai de família. por ter um bom carro (que inveja) e por essa prodigiosa ausência de imaginação não-profissional, que faz o sucesso dele, e a minha agonia...
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T - PORQUE É QUE TE CONSIDERAS
GENTE?
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C - A pergunta realmente é: Porque és tão pedante? Irritante, mas passemos à frente.Partindo como queres de que há gente e Gente, considerar-se Gente, é considerar-se parte de uma elite, e eu não me considero nada disso. Só se de uma "élite negativa" , a das ovelhas negras, aqueles para quem o facto de não pertencerem a uma classe dominante - ou seja lá o que fôr de prepotente - exige um esforço superlativo de consciência (crítica) para não irem mesmo por água abaixo.
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T - COMO DEFINES A IDEIA DE
"ESTAR BEM COM A PRÓPRIA PELE"?
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C - Quer dizer: " O que é ter boa consciência?" Aí está precisamente uma coisa que não sei. Mas posso facilitar um exemplo. Olha pró Espuma! Como aquela pele tem cedido tão bem às açordas de marisco, aos programas de Novaa York e aos barris de cerveja!
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T - USAS MUITAS VEZES A PALAVRA
"MÁSCARA",...QUE RAZÃO DÁS PARA
ISSO?
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C - É realmente complicado e podia-se escrever um tratado da máscara. Todos nós temos uma máscara que corresponde a uma função que nos é atribuída pela sociedade. Assim como uma espécie de uniforme que nos vestem logo que a gente nasce. Preparam-nos para um papel: jurista, pai, filho, padre, mãe. As pessoas são rotuladas segundo a função: sr. doutor, sr.apontador, sr.engenheiro etc, e,ou cumpres o papel à risca ou te lixas. Isto é, sofres os efeitos da pressão social, que pode ir desde as fofocas estilo Natália, até ao manicómio (ninho de cucos) e à pildra. Ou à força de usar a máscara as pessoas acabam por se confundir com ela, isto é, perdem a identidade, e não só, coisificam-se. Nós por exemplo temos um núnero que a TAP - a coisa TAP - , sociedade anónima de responsabilidade limitada - nos deu. Esse número aproxima-nos estranhamente das mesas de cadeiras que nesta casa também são numeradas. Essa reificação é o extremo a que pode levar a definição funcional das pessoas. Outro aspecto , é esse do esforço que as pessoas fazem por se conformar com determinados protótipos socialmente estabelecidos: pai , filho, etc. Ninguém é só por si; é pela sua relação com um determinado meio. Na realidade aquele esforço é quase sempre frustrado. Vidé todas as putices que se fazem no escuro e que mostram bem o descrédito desses padrões. Os pontapés no casamento, a gana de apertar o papo à criancinha que não nos deixa lêr o jornal, o querer matar os irmãos para ficar com o bolo todo, a vontade de dar um sopapo ao pai ou de atirar a avózinha para debaixo do combóio...E no entanto continuam a usar-se expressões como: "Gostam um do outro como irmãos", etc.
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T - PREOCUPAS-TE COM OS OUTROS?
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C - Preocupo-me com os outros, sim senhor! Com tudo o que lhes respeita, menos -digo eu - com o que eles pode m pensar de mim. Na realidade estas bacoradas todas são uma espécie de droga destinada a provocar-lhes alucinações. Aqui vão verdades de mistura com as mais grosseiras mentiras, com as meias verdades e com verdades hipostasiadas e com mentiras simplesmente piedosas. E para quê? Só para dar espectáculo.