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UM DIA DE PRAIA, NUMA FAMÍLIA DE BETOS
Para começar, o beto não é um veranista que vá a qualquer praia. Vai apenas a praias seleccionadas, quais artigos gourmet de uma mercearia gourmet de um bairro gourmet.
Mas como seleccionar estas praias? Simples. Há muitas que já vêm de tradição. As famílias com mais de 17 apelidos, todos eles separados por hífenes, há séculos que para lá vão.
Depois é também preciso garantir que a plebe não vai para estas praias, porque já se sabe que pobres é pior que pombos cheios de doenças. E por isso mesmo, têm de ser praias cujo acesso não possa ser feito por transportes públicos e cujo preço da garrafa de água no bar não seja inferior a 10€. E assim sendo, salva-se a Comporta, São Martinho do Porto e mais meia dúzia delas no Algarve e perto do Porto a Granja e mais a norte, Moledo.
O dia começa cedo. A mãe Tété vai acordar o Tomás Maria (Tommy), o Afonso Salvador (Fonfas), o Lourenço Sebastião (Sebas), a Constança Matilde (Coca) e a Carlota Benedita (Bé). As ninhadas de betos são sempre muito grandes e, mesmo que muitas vezes saia uma cria com trissomia 21 por causa da consanguinidade (os betos têm muito a mania de se comerem entre primos direitos), é muito raro as mães afogarem-nos à nascença. Aliás, nestes meios até fica bem. Ficam óptimos nas fotos e dão imenso jeito para a autopromoção da família nas revistas sociais.
Preparam pequenos lanches e guardam-nos nuns tupperwares lindíssimos, cheios de flores e com alarme anti-pobre incorporado para afastar sem-abrigo, que a tia Kiki faz agora no novo negócio de beta empreendedora. Atenção para não confundir com as marmitas com frango assado e pastéis de bacalhau com feijão-frade que se podem avistar na Costa da Caparica. Como as idades variam, os lanches vão desde pequenos rectângulos de pão integral sem glúten que amortecem dois a dois suaves fatias de fiambre de peru que cumprimenta só com um glu, com uma folha de alface-roxa e tomate querido, até umas deliciosas quiches de salmão pedante fumado em fumo de chá preto com cogumelos das Maurícias salteados em azeite e presunção em abundância, passando claro por suculentas tarteletes de Cerelac gourmet com frutos silvestres da Floresta Negra e pitadas de futuros cargos nas Jotas.
Lá chegam à praia. Quer dizer, chegam à entrada da praia e depois demoram mais meia hora até se instalarem tal é a quantidade de amigos e primos que têm de cumprimentar – Olá, querida! ‘Ta boa? Que fato de banho giríssimo! Adoro os folhos! Foi a tia Ká que fez? – Foi! Não está o máximo? Ela abriu agora uma loja de biquínis com o dinheiro do marido, “supê” empreendedora! – E por aí fora.
Finalmente, encontram uma clareira na areia entre Bettencourt-Mello-dos-Santos-e-Silva e os Couttinho-Roquette-Relvas-Cunha-Vaz para instalar a sua sombrinha. Isso mesmo, adivinharam. E óbvio que a sombrinha foi feita pela tia Bábá que também tem uma marca e já não há paciência para falar disto e vocês já perceberam onde é que quero chegar.
A criançada, já só de fato-de-banho e crucifixo, vai a correr para a água. – Fonfas, venha cá à mãe que a mãe esqueceu-se de lhe pôr as braçadeiras e o Fonfas ainda morre para aí afogado, e depois é uma chatice porque as pessoas vão achar que foi de propósito por ser meio atrasado!
A mãe aproveita esta ocasião para carregar no protector solar em todas as criancinhas, e sempre com o fator máximo. Até era preferível nem terem tirado as t-shirts, a bem da verdade. É que cancro da pele é chato, mas ficarem da cor das crianças romenas dos semáforos da Praça de Espanha é bem pior, um vexame completo.
Mergulhos mais tarde, as crianças vão brincar para a areia molhada. Enquanto uma delas vai chamar amiguinhos e lhes ordena que construam um castelo, outra trata dos processos burocráticos do registo predial, uma delas fica como administradora financeira do empreendimento, ainda outra implementa uma criação de cavalos e escola equestre, e a última, que quer ser actriz, faz de princesa. Claro que os seus trabalhos como engenheiro, advogado, gestor e agrónoma estão assegurados à nascença mas, ainda assim, é preciso começar já a praticar. A última é que virá a entrar no Chapitô e acabará deserdada.
Enquanto os mini-betos brincam, a betalhada já consagrada conversa (os jovens adultos desta sub-espécie não são aqui mencionados porque passam férias juntos, sem os pais, e nesta altura estão a ressacar da sua noite belíssima).
São bons momentos de conversa. Riem-se muito dos lesados do BES, choram de saudades e nostalgia dos tempos de Salazar quando tinham ainda mais terrenos e ficam perplexos quando ouvem falar das greves do Metro, porque nem sabiam que havia Metro.
O dia vai-se passando e o fim da tarde pede sangria de champanhe e frutos silvestres e canapés de lagosta no lounge chiq nice sunset amazing bar da praia. Os mini-betos são chamados para volta da mesa, não porque as mães tenham receio que se afoguem mas porque a conversa chegou à parte de exibicionismo das respectivas crias. E sempre com aquele ar de quem não dá muita importância, mas sem conseguir disfarçar bem o orgulho parental, começa o rol de “Ai, o meu Fonfas com 3 anos já fala mandarim, toca piano e dá aulas de catequese”, “Ai, a minha Coca de 16 anos já fuma, já sabe sacar gajos no Main com apelidos decentes e já sabe que antes do casamento só vale anal porque não é pecado.” Se calhar esta última parte eles não admitem em voz alta, mas sabem-no.
Enfim, o crepúsculo chega e a betalhada tem de recolher aos seus castelos. Há banhos a tomar para tirar a areia, o sal e aquela camadinha de hipocrisia depois de um dia inteiro a fingir que se gosta de toda a gente.
Amanhã há mais praia
UM DIA DE PRAIA, NUMA FAMÍLIA DE MITRAS
O mitra é uma espécie completamente diferente do beto. O mitra não vai a qualquer praia, essencialmente porque não pode e não por falta de vontade, e depois acaba por mascarar a inveja que tem dos betos com um falso orgulho nas praias que frequenta.
Assim sendo, a selecção de praias fica limitada àquelas com acesso por transportes públicos ou por carro próprio mas sem estradas de terra batida para não estragar os para-choques dos carros rebaixados. Portanto, ficam a sobrar Carcavelos, aquelas do início da Costa da Caparica, aquela do jardim do Torel no meio de Lisboa e algumas caixas de areia dos jardins infantis.
O dia começa cedo. A mãe Sheila vai acordar o Rúben Tiago, o Wilson Gerson, o Fábio Mikael, a Soraya Vanessa e a Rute Miriam. As ninhadas de mitras são sempre muito grandes porque como orgulhosos desinformados nem sabem o que é um preservativo.
Preparam pequenos lanches e embrulham à balda em guardanapos meio sujos que sobraram do jantar do dia anterior na casa dos vizinhos. Aproveitam que lá foram e roubaram uma geleira que a deles é pequena e dá mais jeito para levar a erva e conservá-la fresca, nunca se sabe quando é que vão aparecer clientes sedentos por um charrinho na praia.
Apesar de as idades dos mitrinhas variarem, os lanches são iguais para todos e vai tudo corrido à clássica “sande” mista com queijo e fiambre, cujas embalagens só não foram roubadas por eles porque a mãe dos putos os apanhou a roubar mal. Portanto, começou aos berros para toda a gente no Minipreço achar que ela estava a educar os miúdos e depois acabou por ter de ser ela a roubar os pacotes e mais uns iogurtes com aroma a labrego. Se queres as coisas bem feitas, fá-las tu. Já dizia o Al Capone, ou o Escobar, ou o Ricardo Salgado. Já não sei bem quem disse isso mas foi um bandido do género.
Lá chegaram à praia. Quer dizer, chegam à entrada da praia e demoram mais meia hora até se instalarem. Não que cumprimentem muita gente, mas os cumprimentos demoram muito tempo porque são sempre um “combo” de gestos que inclui “high 5”, choque de punhos e mais uma série de sinaléticas manuais de fazer inveja a qualquer surdo. Portanto, depois de falarem a colegas do arrastão de 2005, a grandes companheiros dos “meets” de 2014 no Vasco da Gama e ainda a alguns irmãos de armas da claque do Olivais e Moscavide, lá acham um lugar para se sentar. De mencionar que também demoraram mais a escolher o lugar porque tem sempre de ser de difícil acesso para os polícias de bicicleta.
A criançada, já só de sunga e crucifixo de plástico, vai a correr para a água. – FÁBIO MIKAAAEEEEELLLLL! Anda cá, car*lho! Ca gente esqueceu-se-nos de te enfiar nos braços estas medras e tu ainda vais de focinho à água e ficas lá a afogar-te. Olha, também digo-te já Fábio Mikael, era um descanso! Que isto de alimentar tantos bezerros, f*da-se! Vai lá, vai…
A mãe aproveita esta ocasião para voltar a não pôr protecctor no Fábio Mikael. “Pode ser que o puto apanhe um “cancarozinho” na pele e a gente consiga mais um subsídio qualquer do Estado” – pensa ela.
Arrastões mais tarde, as crianças sossegam e ficam a brincar na areia molhada. Não sabem o que é um castelo, por isso fazem antes um cartel de areia. Dividem entre elas as tarefas de líder do cartel, controlador de logística no tráfico de conchas e pedrinhas, chefe de segurança (bater noutros meninos), responsável de recrutamento de mitrinhas para o gangue e a última, que não se revia nesta família, era a polícia. Anos mais tarde foi para a PJ e não verteu uma única lágrima quando prendeu o pai, os irmãos, a mãe e até a avó, que aquela velha era danada.
Enquanto os mitrinhas brincam, a mitralhada já cadastrada conversa (os jovens adultos desta sub-espécie não são aqui mencionados porque ficaram à janela do seu «cubico» a ver quem pára lá no bairro, ou foram dar giros nos seus “botes” para roubarem estações de serviço, ou quaisquer outras actividades tão divertidas quanto ilegais).
São bons momentos de conversa. Razoáveis, admitamos, porque eles não conseguem muito bem articular frases num discurso coerente, e às vezes nem sequer palavras suficientes conseguem articular para fazer uma frase. Mas lá falaram dos corruptos dos banqueiros e dos políticos, que conseguem roubar ainda mais que eles, falaram do seu Benfas e do filha de uma “ganda” p*ta que lhes roubou um penalty e cuspiram no aumento do passe do Metro e nesses gajos que lá fingem que trabalham e só querem é estar de greve.
O dia vai-se passando e o fim da tarde pede sangria de pacote do LIDL e umas pevides, para se fazer uma competição de quem consegue cuspir a casca para mais longe enquanto se apoia só na perna direita e aperta os testículos com a mão esquerda. Bom jogo.
Os mitrinhas são chamados para se juntarem ali à volta do porta-bagagens aberto onde se sentam os mitras, no seu “bote” no parque de estacionamento da praia. Os vários mitras amigos ali reunidos exibem as suas crias com um orgulho visceral. “Pá, este cabrãozinho aqui já bate nos colegas todos da turma. Mas também era o que faltava não bater, tem 10 anos e ainda está na primeira classe”, “E a minha mai nova? F*da-se c'orgulho! 14 aninhos e já está grávida. Sai mesmo à mãe!” e tantas outras semelhantes proezas embandeiradas em arco (agora é que lixei os mitras que estavam a ler esta crónica porque eles não sabem o que quer dizer esta expressão).
Enfim, o crepúsculo (outra) chega e a mitralhada tem de recolher aos seus bairros. Não há banhos para tomar, porque aquela camadinha de areia, sal e surro, se for bem grossa, os protege de facadas dos gangues rivais. Sempre são menos hipócritas no que diz respeito a fingir que gostam uns dos outros.
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