quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

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A TRANCA E A SALA DE CONVIVIO DO RC
VÃO CANDIDATAR O TEXTO COLECTIVO
"O MILAGRE DAS ROSAS ou A ASCENSÃO
E QUEDA DA ARAGONEZA DOS MILAGRES "
A PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE

Dos muitos textos que foram criados em modo de brainstorm ,no velho RC, este ,é talvez o mais completo , o que maior gozo proporcionou à roda de autores.

O Carlos Correia, o Augusto, o Ricardo, o Zé Herdeiro, o Zé Carlos, o Tó Mendonça, o Zé Dinis e o Cascada, na nossa sala de convívio do RC, no 7º.andar do edifício 25, reduto da TAP, lançaram para o ar, uma série de ideias que lhes veio à cabeça, sobre o que se teria passado no célebre episódio da História de Portugal, conhecido pelo MILAGRE DAS ROSAS .

O Cascada,para além das suas próprias inspiraçóes, ia, de caneta em punho , anotando as mais mirabolantes sugestões, e no final, passou para o papel em letra de forma o texto final, da nossa visão do que realmente se teria passado no Terreiro do Paço, e que se tornou num texto de culto do velho RC.

Pela sua qualidade ,vai entrar na secretaria da UNESCO, a nossa candidatura a Património Imaterial da Humanidade, acompanhada duma proposta dum regulamento de salvaguarda do mesmo.

Recordo aqui o texto:

O MILAGRE DAS ROSAS ou A ASCENSÃO E QUEDA DA ARAGONEZA DOS MILAGRES


texto de qualidade
O MILAGRE DAS ROSAS
ou
A ASCENSÃO E QUEDA DA ARAGONEZA DOS MILAGRES
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Corre o anno domini de 1285
Estamos na capital do Reyno de Portugal onde tudo vai bem e nada vai mal.
Amanhece. Com a brisa leve e cheirosa do Mar da Palha correm badaladas e acordes de cantochão pela atmosfera límpida. Esvoejam passarinhos em derredor dos campanários e o mosquedo infesta a urbe fedorenta.
Brincam meninos nos becos, namoram sopeiras pelos balcões, engalfinha-se a moçada pelos terreiros em justas de grossa porradaria. Queimam-se bruxas nas praças, zurzem-se putas e ladrões, vendem-se cachuchos e cabras, pilecas , escravas e tudo, uma velha sopra num canudo e um frade barrigudo vende bulas a tostão..
No castelo tremulam flâmulas e ceroulas. Passam cavaleiros de pendão e da Sé sai uma procissão. à frente vai o Prior, atrás dele o sacristão de vela acesa na mão; seguem-nos trinta velhas coxas e marrecas entoando cantochão. Depois a Sagrada Congregação das Escravas do Sagrado Coração.
Nos arcos do Hospital de Todos os Santos arrastam-se coxos e gafos exalando pestilências; os insanos berram insolências aos passantes e uma velha de ares importantes vende castanhas, chupa-chupas, boletas e outras iguarias tamanhas.
E o alcaide Marchueta, bêbado da pingoleta, enfrasca-se c'as barregãs numa tasca ao pé do Paço.
No Paço tremula o pendão dos borgonhas, região de boa pinga e terra natal dos antepassados de El-Rey.
No terreiro agita-se a turbamulta dos vendilhões e das varinas, das criadas e moços de estrebaria, de mistura com caraveleriros de Cacilhas, mercadores de Veneza, mesteirais pançudos, aprendizes escanzelados, almocreves, mouros de Rabat-Salé, turistas do Texas e cobradores de impostos.

De por entre o tumulto avulta uma festiva roda de meninos queques. Uns muito frics nos seus briais de jeans e balandraus Yvo São Laurêncio esgarçam os fundilhos pelos degraus da estátua; outros meio zonzos da pedrada engrolam cantigas da Joana Baez e do François Villon ao som de pífaros de pau e corno.É a clientela habititual de Isabel de Aragão, nome de solteira da ex-mulher de um industrial de panificação e viúva de um pastor luterano de Bronx, a mesma que El-Rey encomendara para o seu leito num dia de grande ressaca.
De entre eles, uma donzela muito pintada e dengosa, estilo avenida da Cidade Eterna, clama pela raínha:
-Oh Isabiel, Isabiel! Dê cá uma passa que a menina tá p'ssiessa!...
Isabel muito chanada, dormita tapada com o manto de chamalote, encostada à grade do urinol. Acorda c'a corôa à banda.
-Chata! Acabou-se a erva. Espere! (e arrotou).Assoou-se ruidosamente à faixa de Miss Aragão 1263, uma velha faixa de linhagem já muito ruída da traça, queimada das beatas e cheia de nódoas de caldeirada.
-Ai caraças! Onde é que estarão os putos do Diniz?!!
-João Afonso, ó João Afonso!
Os três bastardinhos saiem de trás do carrinho de um mercador de pevides.
-Oh Afonso! A Santinha tá a chamar. Grita um deles, ruço e com a ranhaça a cair-lhe no beiço.
-Binde cá ó bastardinhos! Ide mui asinha à minha alcova no Paço e trazei-me o misterioso pacote que está na prateleira do penico. não leixeis que el-rey bosso paizinho bos beja senão bamos todos de cana. Ide, ide asinha!
Na sala de armas el-rey joga à carica com o escanção dom Raposão Mendes, sob o olhar oblíquo e ciumento do palafreneiro Don Quicas de Vilariques - vulgo Quiquinho das Pilecas, e do Bispo de Coimbra, que lia boquiaberto os títulos da "Gazeta do Paaço":
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-"O MESTRE DE CALATRAVA HÁ TRÊS MESES QUE NÃO CAGAVA?"
-"O PAPA CLEMENTE DEU TRÊS TRAQUES DE REPENTE"
-"O GRÃO DUQUE ESTANISLAU CHAMUSCOU O PIRILAU"
-"A IRMÃ DE MAOMÉ ERA VIRGEM,JÁ NÃO É"
-"O GRÃO MONGOL TEM O CÚ EM CARACOL".
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O Bispo engasgou-se ,teve um trovejante ataque de tosse e comentou:
-Isto está cada vez pior! Já um cristão bem pensante não pode sair à rua!...
-Quem é que não pode sair à rua? Inquiriu el-rey.
-Sou eu meu Senhor, sou eu, ...Acovardou-se o Bispo.
-A propósito. Tenho que ir à rua. Palafreneiro! Sela-me já aí uma azémola para eu ir à Adelaide do Beco das Naus! De caminho traz-me os falcões que me ofereceu o Duque da Saxónia. Vamos dar um jeito aos pombos do Rossio.
-O Duque da Saxónia tem uma grande caximónia...
Casquinhou o truão Canelas empoleirado num trenó Queen Anne, vulgo Quinéne.
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-Um dia ainda te dou cabo dos guizos. Resmungou o palafreneiro a abeberar na ciumeira.
Entretanto irrompe pela sala o Afonsinho IV com a Constâncinha pela mão:
-Ó pai a infantinha tá a chorar!
Àparte do truão:
-Pudera, tem a corôa cheia de ferrugem!
-Desempachai-me o caminho que tenho um negócio de Estado, ide-vos aporrinhar a avó Brites!
Para aumentar o chavascal entra o Ouvidor das Alfandegas:
-Senhor , a nau do Barreiro encalhou no Mar da Palha. Ainda ficamos sem pitrol pró jantar, já lá se foram trinta pipas barra fóra...
E Dona Cunegundes Amaro, alcoviteira-mor , aproveitando a deixa com um sorriso de esverdinhada e pérfida satisfação:
-Alteza! O Infante D.Afonsinho anda a fazer barquinhos de papel com os mapas do descobrimento das Canárias!

-Ponham-me esse barrasco a ferros! E não me lixem mais a real mona que vos degredo a todos para o QCM fazer kápapontos
Pausa em que o rei calça as luvas de pele de cão.
-Oh não, só me faltava mais esta!!! Que me quereis irmãnzinha?
Tratava-se de Irmã Gaspara do Santo Socorro dos Aflitos, secretária da raínha. Lavada em lágrimas gemia:
-Senhor, senhor. Sua Alteza a raínha está outra vez chanada. Ai valha-me Santo Inácio de Loyola, que triste exemplo para os infantinhos! E assoava-se às às fraldas e desfiava o rosário. Àparte do bobo:
-Santo Inácio de Loyola tem macaquinhos na tola!
-Que me dizeis? Sobressaltou-se el-rey.
-É verdade Senhor. Fungou ela.Assim mesmo os bastardinhos levaram um pacote de liamba para o terreiro onde se levantava grande alarido.
-Ah, essa vaca aragoneza...Assim que lhe tiram o cangote pira-se logo do Paço.,
-Oh Condestável! Onde está o meu Condestável?
Entra o Condestável de lança e montante .Um azeiteiro especializado unta-lhe as dobradiças da armadura.
-Condestável de Atouguia, organizemos já uma expedição punitiva ao terreiro. Precisamos de recuperar a Rainha para o sistema!
-O Visconde de Atouguia apertou o papo à tia! Bolsou o truão..
-Tragam-me o trono. Trombeiro Mor, manda tocar a reunir. Gritou o Rey. De repente entra na sala um jerico espanhol, arrastando com uma grande chiadeira o trono gótico de Afonso Heniques, El-Rey sentou-se endireitando a coroa ,afogueado.
-Tragam-me os mapas! E confidencialmente:
-Chegue-se cá ó Condestável! Olhe, você ataca pelo Arco da Rua Augusta com os seus alabardeiros que eu com os meus archeiros ataco pelo lado do Ministério da Marinha. O sargento Raminhos vai pelo Campo das Cebolas com a peonagem, enquanto o Conde de Andeiro ataca pela Rua do Arsenal... e diga à minha sogra que não venho jantar.
-O Conde de Andeiro tem um furo no traseiro. Soltou-se o truão.
O boato começou a correr
Às onze horas o povoléu começou a agitar-se ante o aparato bélico que se aprestava para o ataque.O boato começou a correr que a Rainha estava outra vez chanada. Pouco depois surge Don Diniz seguido de grave e façanhuda comitiva. Logo atrás do Rey, o Primaz de Braga resplandescente de lantejoulas, rendas de bilro, misssangas e pechisbeques. Depois o Meirinho-Mor D.Mendo de Guedes Vaz, enorme, granitico e bruto como um penedo; o Ouvidor dos Azeites D.Paio de Oliveira, o Fiscal das Farinhas Fernão Gorgulho de Trancoso, o Governador da Casa das Indias, o Juiz de Fóra, D,Nuno Nunes, gentil -homem de Paço D'Arcos, que só aparecia para banquetes e solenidades, o representante da Casa dos Vinte e Quatro - que na hora eram só vinte e dois-pois dois estavam com baixa da Misericórdia por via da lepra,,o inspector Paredes da Real Polícia Judiciária,O Núncio Apostólico D,Giovanni Firenzesco della Cinecità, a Abadeza das Ursulinas Dona Brites Freitas do Amaral; Doutor Jorge Campinos, Ouvidor para o turismo e cruzadas; dez frades do Covento da Madre de Deus;dez freiras descalças de Chelas e por fim o bobo Canelas todo torcidinho e a babar-se gritando em voz roufenha:
-A Princesa de Aragão batia pudins à mão.
Ao ver-se rodeada de tanta aventesma a Rainha para disfarçar desatou a assobiar a "Aldeia da Roupa Branca" com um olho na merda e outro no infinito. A peonagem rompe em gargalhadas. O Primaz arreia com o báculo na tola do sargento de alabardeiros .Faz-se um silêncio sepulcral. D.Diniz cospe a hóstia elástica com que preparava o hálito para a Adelaide e grita:
-Que estás aqui a fazer minha cabra Aragoneza, minha chanada?
A Rainha mui bêbada da pedrada e como se não fosse nada com ela, perguntou:
-Ó truão, que horas são? Já são horas da zaragatoa?
-Isabieeeeeel! Berrou el-rey, .Num me escutais? -Pois não Senhor El-rey Dom Diniz , putanheiro-mor deste Reyno! Que se passa? A Adelaide não vos avia hoje? E a Grácia? E as minhas três açafatas e a ama dos bastardinhos? Só vos lembrais de mim para me desviar da virtude?..Olhai estes pobrezinhos tão famintos e descalcinhos. Se não fora a ervinha com que os domestico que seria de vós meu príncipe de ópera bufa, meu Don Juan de alcáçova, meu janota de barbacã? Ide-vos a plantar couves para Leiria que já vos tardam os pinheiros que encomendastes ao Duque de Urbino.
Àparte do truão:
-O Duque de Urbino tem o pirilau pequenino...
-Senhora, insiste D.Diniz noutro tom., aconselho-vos a recolher ao Paço. Sois Rainha de Portugal! E num assomo de imperialismo:
-Talvez imperatriz do Brasil!...
Àparte do truão:
-A Imperatriz do Brasil come papas por um funil
-...ou obrigais-me a usar da força!Insistiu o rei ,apontando a soldadesca.
Pânico entre os hippies da Rainha.
-Ninguém arreda pé!! Grita Isabel com a veia do pescoço inchada. E agora quereis-me levar de cana?!Experimentai! Se algum destes marmanjões me fila, faço um terramoto em 1755, que vai tudo pró galheiro...
-Leixai-vos mas é de merdichelices e mostrai-nos o que levais no regaço!
-Senhor, tratais-me como se retornada fosse. Trazeis mandato de busca?
-Cuidai que chamo o meirinho!
Ao Primaz dá-lhe o abafarete, enquanto o truão, montado na marrequinha do Monsanto faz gestos obscenos sobre a cabeça de El-Rey.
-É a última vez que vos aviso. Que escondeis nas fraldas?
-São malmequeres| Respondeu Isabel com maus modos.
-Senhora| A História diz que são rosas....(segredou-lhe o Bispo).
-São rosas meu Senhor, são rosas! Precipitou-se ela corando. E das pregas do manto tombam em cascata:

-trezentos e noventa e sete "Swatch" da treta.
-Dois quilos de liamba
-Um maço de Pall-Mall que tinha sido pall-mado
-Dois pacotes de AC Virgínia Type
-Uma iluminura a côres do Zuza
-Um psaltério ferrado onde ela apontava os telefones das amigas
e
-1 penso higiénico usado
Finalmente o sacana do milagre!
Uma exclamação imensa atroa o terreiro. A turba agita-se como se tivesse chegado o Mantorras. Há desmaios, gritos, chiliques, fanicos e apoplétes. Acendem-se e apagam-se luzes multicôres. O urinol explode em nuvens de fumo amarelo e vermelho que desenham no ar gigantesco cartaz : GLÓRIA À CAMARADA ISABEL DE ARAGÃO. Faz-se ouvir um côro celestial com música de Frederico Valério:
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Três tampax
um Modess
uma toalha de bidé
prá Rainha se limpar
da cabeça até ao pé .

Raínha (soprano solo):

Água fresca
do Mondego
água fresca que o Rei não pagou
no castelo
lava o rego
e outras coisas que não me alimbrou

Ó Isabel, minha Santa! Gagueja o rei.
O Primaz cai de joelhos e a mitra enfia-se-lhe até ao pescoço. Ajoelha-se a multidão e reza e canta como num alucinante final de revista. E tudo aquilo era uma imensa confusão de coros, gritos, traques, arrotos, fados e guitarradas, árias de óperas, assobios, Te Deuns e missas cantadas.
Dos telhados do Ministério do Exército descem anjos de camuflado e grandes cabeleiras brancas tocando guitarra eléctrica. Um zepellin gigantesco emerge majestosamente do Castelo de São Jorge rebocando uma feérica aurora boreal de papel pintado. Dos lados do Montijo surje uma esquadrilha de passarolas despejando títulos

do tesouro sobre a multidão. O cavalo de D.José abre as asas e decola levando o rei e o marquez para as nuvens onde chocam fragorosamente com o Pai Natal. Caiem no Mar da Palha. Do topo do Arco da rua Augusta desce o senhor Salgado Zenha de cabeleira e vestes talares. Espalha pétalas de rosa entre os seus fiéis e repete alarvemente:
-Ut sit omnibus documento! Ut sit omnibus documento!

No quartel do Carmo disparam-se vinte e um trons ao mesmo tempo. E com tão má pontaria que arrebentaram com a estátua de Maximiliano do México e mataram uma velha no Hospital de Todos os Santos.
O Campo das Cebolas floriu e o escudo subiu na Bolsa de Londres. Na outra banda, o Cristo Rei bateu as palmas e, alçando as saias, dançou um furioso flamenco com castanholas e tudo.
E veio o côro do São Carlos e cantou árias da "Tosca", e veio o "Verde Gaio" e dançou o "Tanque das Patas", e a Amélia Rey-Colaço, envolta em brumas wagnerianas, aportou às colunas num bergantim com motor-fóra-de-borda, e veio o senhor António Vitorino de Almeida que executou Chopin num cadafalso de marca Steinway, as irmãs Meireles a cantar Guillaume de Machaud, e o senhor Jorge Peixinho montado num elefante azul a dirigir uma orquestra de tachos e ferrinhos..
E o entusiasmo por causa do milagre foi tal que D.Diniz nâo resistiu e cantou aquela, a única que ele sabia:

Ai frores, ai frores do verde piño
se sabeis novas do Manuel Alegre
Ai Deus e u é?

Ai frores, ai frores do verde prado
se sabeis novas da Nau Catrineta
para pôr a salvo o meu sapato...

E a raínha com os seus hippies:

-JEEESUS CHRIIIIIIIST SUPERSTAR!!!!!

E o Ivo Cruz desancava a orquestra.
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f i m

Realização de Herlander Peyroteo
Fotografia de Augusto Cabrita
Luminotécnica de Jim
Adereços de Pórtico e Altamira
e
o incomensurável talento de José Cascada


Publicada na velha TRANCA manual em 1976.

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